A prateada do Carrapicho

A prateada do Carrapicho

Descobri, poucos anos depois, que não são os lugares que nos moldam, mas a gente é que modifica as querências

Paulo Mendes

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Hoje, sentado aqui debaixo da amoreira, mateio e recordo. Quando guri bolicheiro lá na Vila Rica queria que a vida, que o tempo, passassem depressa, de atropelo, porque na minha concepção o melhor era ser adulto o mais ligeiro possível, ganhar o mundo, pois qualquer lugar seria melhor, mais atrativo e interessante do que lá. Naquela biboca em que estava, havia campos, matos, sangas, caponetes, açudes, tropas, chácaras, estradas de chão batido, casas de zinco, homens e mulheres humildes, alvoradas, entardeceres tardios, bolichos beira de estrada, desesperanças, sonhos cortados pela metade, caçadas de tatu, cachorros lebreiros, facas enferrujadas no fundo das gavetas, músicas gauchescas em rádios de pilha, galos cantando em longas madrugadas frias, caturritas que chegavam cansadas no verão, andorinhas em bando e, às vezes, até cheiro de churrasco nas brasas em um fogo de chão. 

Mais tarde, ao surgir a primeira oportunidade, me bandeei de lá, porque como já disse, entendia que era longe dali que iria me encontrar. Nem uma coisa nem outra. Descobri, poucos anos depois, que não são os lugares que nos moldam, mas a gente é que modifica as querências. Quanto mais me separava do rincão, mais o campo ia definindo meu jeito de ser, e, afastado, ficava ainda mais ligado ao meu passado. Mas eu tentei - acho que consegui - ir me modificando por dentro, embora sempre igual. Como o rio de Heráclito, sempre o mesmo e, invariavelmente, outras águas. Cada vez que voltava ao pago era eu, o bolicheiro e, ao mesmo tempo, era outro. O senhor e a senhora estão entendendo aonde quero chegar? 

Meu tio Carrapicho usava uma faca pequena na cintura para a lida, e uma adaga entre a carona e os bastos. Tinha um cabo prateado e reluzente, uma bainha de alpaca. Ele garantia: “Não é uma arma, é a justiça que carrego comigo”. O tio fora militar em São Gabriel e aprendera com um oficial amigo a manejar como poucos o ferro branco. “Na hora derradeira, precisamos morrer ou viver felizes, se o índio envareta, tá perdido”. Por isso, nas poucas vezes que usou a adaga, o fez com alegria. Mas nunca matou um ser humano. Na verdade, salvou. Na fazenda Itaroquém, certa feita, um peão se enredou no laço, ficou a pé, exposto, um touro enveredou e outro cuera pealou o bicho. Antes que pudesse matar o incauto campeiro, a adaga do Carrapicho cortou o sangrador do salino que se estrebuchou ajoelhado olhando para o rodeio. 

Desde esse dia Carrapicho não campereou mais. Salvara um companheiro mas sacrificara um animal, o que ele estimava mais que gente. Pediu as contas e foi para a cidade ser cozinheiro da prefeitura. Assim se aposentou. Agora, mais de 30 anos depois, quando fazíamos a mudança de meu irmão Luiz, da casa velha onde tínhamos o bolicho para a nova, na antiga Esquina Maboni, achamos um baú de madeira com vários tarecos esquecidos. Entre eles, a prateada do Carrapicho. Hoje, ela está aqui comigo. A adaga me faz estar lá, outra vez, porque andei por muitos lugares, mas tudo que precisei na vida era daquela simplicidade. Ah, esta recordação corta em tiras meu coração interiorano que, saudoso, pulsa por algo que já não existe. Porém, sobrevivo aqui na terra, no sonho e na invenção da literatura. 


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