Estenda a mão

Estenda a mão

Hoje, sei que terei uma boa ceia, caso vivo estiver neste Natal. Agradeço a Deus (...), mas sei que muitos pelo mundo não terão a mesma sorte.

Paulo Mendes

Solidariedade necessária

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Éramos remediados, como se classificavam aqueles que nem eram donos de posses, nem muito pobres. Tínhamos uma chácara à beira da estrada real, na velha Esquina Maboni, vacas de leite, um cavalo, algumas ovelhas, lavourinhas de mandioca, cana, milho, um mato de eucalipto na parte da frente e outro de árvores nativas ao fundo. E o bolicho, que a mãe, dona Mirica, não gostava que chamassem assim. “É bar e armazém”, repreendia, “bolicho tem meia dúzia de coisas, borrachos, jogo, música, coisa de bagaceira”, falava a comerciante. Na mesa, nunca faltou nada, tínhamos fartura, digamos assim. Quando ficávamos sem carne, a mãe matava uma galinha. As ovelhas, os perus e os gansos, esses ela não permitia. Uma vez por ano, carneávamos um porco, que engordava num chiqueiro um pouco afastado das casas.

Assim, podíamos levar uma vida tranquila, embora simples. Ouvi a mãe dizer para uma de suas irmãs que morava na cidade que o comércio sustentava as despesas, alimentação, vestuário, colégio dos guris, eu e meu irmão. O salário de meu pai, José Mendes, que era funcionário público, mesmo sendo pequeno, dava para ele ir juntando, às vezes comprando animais, e, um dia, até comprando um pedacinho de terra vizinha. Eles eram comedidos, sem festas, viviam para trabalhar e dar um futuro digno para os filhos. “O estudo, a educação e o conhecimento ninguém tira”, repetia seu Mendes. A gente procurava não decepcionar, íamos ao colégio com afinco, sem faltas. Eu fiz faculdade. Meu irmão, logo após o ensino médio, decidiu trabalhar, cuidar da mãe, da chácara, é um cara da lida bruta, mas mostra que sua educação é exemplar e altruísta.

Nossos pais não eram religiosos, mas tinham uma humanidade para dar e vender. Não costumavam enfeitar a casa no Natal, nem faziam ceias. Tampouco iam a missas ou celebrações. Mas, nesse período, costumavam ajudar o povo humilde que vivia pelos corredores, em ranchos de barro, telhados de folhas de zinco enferrujadas. Um dia, após o almoço, vi seu Mendes encilhar o Tostado e sair ao tranco. Voltou ao final da tarde. Havia vistoriado e conversado com peões changueiros e desempregados. À noite, me encarregou de, no dia seguinte, levar feijão, arroz, um naco de charque, sal, verba, um pouquinho para cada um. Naquela época, não se usava o termo kit, mas fiz vários kits de comida e entreguei nas casinhas beira de estrada, tão humildes, que o pai havia apontado.

Foi uma iniciativa dele, mas um ensinamento para mim. É o que se chama de solidariedade. Um gesto simples, mas que garantiu “comida na mesa no Dia de Natal”, disse o pai. Eles inventavam trabalho, pequenas atividades nesta época, para proporcionar verba para essa gente dos arrabaldes. Aqueles que aceitavam garantiam dinheiro extra. E saíam com uma cozinhada de mandioca, uma lata de banha, uma garrafa de querosene. “Gente não nasce para passar fome”, dizia o velho, esfregando as costas da mão direita em suas vistas já cansadas de tanta vida e lonjura.

Hoje, sei que terei uma boa ceia caso vivo estiver neste Natal. Agradeço a Deus por esta dádiva, mas sei que muitos pelo mundo não terão a mesma sorte que a minha. Então, amigos, estendam a mão este ano a alguém que esteja em dificuldades a seu lado. Garanto-lhes, nem eles, nem vocês, esquecerão esse dia.


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