O que falta na alma

O que falta na alma

Durante anos convivemos, um guri bolicheiro e um velho no fim da vida de muita luta, muita solidão, pouco descanso e só um pingo de alegria

Paulo Mendes

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O homem mais casmurro que conheci, seu Turíbio, também foi o que se revelou ter o coração mais doce e macio. Talvez apenas eu tenha sabido disso, a maioria das pessoas que frequentava nosso bolicho beira de estrada só conhecia seu lado carrancudo, amargurado e duro de homem judiado pelas agruras da vida. Foi criado sem pai nem mãe para os lados da fronteira com o Uruguai e ainda bem guri, 14, 15 anos, precisou começar a trabalhar, carreteando solito, carregando dormentes para as estradas de ferro da antiga Viação Férrea do Rio Grande do Sul. A avó também era pobre e, segundo soube por comentários, vivera correndo atrás de despojos de guerra e depois vendendo em Rio Pardo armas, ouro, roupas, botas e tudo o que de valor encontrasse nos campos de batalha. A velha, diziam, não se intimidava e por vezes sabia onde seria o confronto e ficava à espreita esperando que tudo terminasse. Era impiedosa. Alguns combatentes que encontrava vivo, ela mesma terminava de matar. 

Por isso, o neto era sofrido e de poucas palavras. Mas comigo, guri bolicheiro, seu Turíbio se abria. “É bom a gente ter quem nos escute, as pessoas não compreendem um xiru como eu, não tenho muito a oferecer, fiquei sem família, não fiz amigos”. Sem saber o que dizer, balbuciava: “Mas comigo o senhor pode contar, seu Turíbio”. Da primeira vez, retrucou: “De que me adianta um amigo desta idade, nem sabe lavar a bunda”. Eu ria. Depois, quando repeti que estava ali e podia escutar, pediu desculpa. “Sou grato, teu silêncio, tua atenção é tudo o que preciso, já cansei de falar sozinho. Por isso venho aqui na bodega todos os dias te contar minhas desventuras.” “Eu fico lhe esperando, também não tenho amigos, vivemos aqui fora, pouca gente, temos que nos ajudar um ao outro.” Neste dia, na verdade noite, ele soltou uma risada larga e disse: “Até vou tomar um aperitivo com bitter, pra comemorar”. 

Durante anos convivemos, um guri bolicheiro e um velho no fim da vida de muita luta, muita solidão, pouco descanso e só um pingo de alegria. O ancião contava coisas e o piá escutava. Eram relatos de uma existência dura, mas também havia partes engraçadas. Ele vivera viajando e dormindo nas fazendas. Ouvia causos de assombração e anedotas da peonada. Recordo de cada uma delas, algumas vocês já leram aqui nesta coluna, são tantas, uma melhor do que a outra. Em cada causo, notava que por trás daquele coração endurecido, havia um macio e doce. 

Pouco a pouco, a idade e a força dos anos foram pesando e meu amigo definhava. Nesta época comecei a escrever uns versos e causos na Olivetti que o pai acabara de me comprar. Sem me dar conta, muitas coisas que escrevia era ele mesmo havia me contado. Eu apenas dava uma enfeitada, mudava aqui e ali. O velho se deleitava porque inventei um personagem que era carreteiro contador de histórias campeiras, aonde chegava era a alegria da criançada. Seu Turíbio ria e pedia, “conte de novo aquela parte do mentiroso que descobriu uma toca enorme de um tatu fantasma”. Assim terminou sua vida, ouvindo as histórias que ele próprio havia inventado. Que foram reinventadas. Porque a arte é assim, como disse recentemente a editora Clô Barcellos, é “aquilo que falta na alma”. 


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