Tigre e a enchente

Tigre e a enchente

Tinha o pelo colorado, parecido com os cabelos do homem. Como o dono, andava perdido quando se encontraram, há muito tempo.

Paulo Mendes

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La putcha! Que tempo feio/ Que enchente que anda danada/ Já matando a animalada/ Sem nunca mais ver rodeio/ A água molhou o esteio/ Perdi o caíque no rio/ Meu peito tá que é um vazio/ De me atorar pelo meio... 

O homem: Era um peão simples e trabalhador, como tantos que andavam pela costa do rio, vivendo de changas, de empreitadas, um serviço aqui, outro lá, a vida seguindo em círculos viciosos e enfadonhos. Assim era a vida que ganhara, sem família, sem amigos, chegara numa pirágua naquela sexta-feira que nem lembra mais o ano, descendo o rio, e por ali ficou. Era mais um, quase invisível, nem nome tinha, o chamavam de Ruivo, por causa de suas melenas cor de fogo. Trazia encomendas da Argentina. De vez em quando fazia uns serviços em estâncias próximas, mas na maior parte do tempo andava pelo porto bebendo, conversando, sentado, olhando para o grande rio que parecia dormir. Mas ele sabia que, dentro daquela calma, existia em ser em movimento, um animal selvagem pronto para dar o bote. Quando estava solito, costumava conversar longamente com seu cão. 

O cachorro: Tinha o pelo colorado, parecido com os cabelos do homem. Como o dono, andava perdido quando se encontraram, há muito tempo. Ele era apenas um cusquinho, ganindo, abandonado, na volta de um afluente, lá perto do Rincão do Tigre, deixado para morrer à míngua, como o homem também havia sido abandonado quando guri. O homem ouviu os ganidos, encostou a canoa perto de uma clareira e o juntou. Nunca mais se separaram, pelo menos até agora, quando o rio subiu, subiu, subiu mais... e ganhou definitivamente as margens, derrubando árvores, invadindo e destruindo moradias, causando desgraças e encharcando tudo de um jeito que parecia que nunca mais se ia pisar em terra seca. 

A enchente: O rio já havia se espraiado pelas suas margens muitas outras vezes, mas nunca como dessa vez. Muitos chegaram avisando, semanas antes, que andava chovendo lá pelas cabeceiras, na divisa com Santa Catarina. “Cheia grande vem se formando”, alertavam, enquanto desabavam temporais e raios ajoujados. Pelas vendas e bolichos, a peonada encolhida entornava uma pura e pedia proteção de São Pedro. Dentro dos ranchos, velhas senhoras rezavam para Santa Bárbara, queimavam velas e ramos, faziam súplicas. De nada adiantou. Na madrugada, a enxurrada surgiu violenta, pegando as pessoas dormindo, destruindo tudo o que havia por diante, moradias, estâncias, barcos, animais... Tudo arrasado.

O homem: No outro dia, ao amanhecer, Tigre, que havia sido arrastado pelas correntezas por vários quilômetros abaixo, conseguiu sair para terra firme e veio o mais rápido possível, esbaforido, babando, trêmulo. Começou a latir fraco, grunindo, quando, no lugar da casa, encontrou apenas um barco que estava atado a uma árvore grossa, a 100 metros da casinha de madeira onde moravam, o homem e ele, o cão. Ninguém nunca mais soube do homem, o corpo nunca foi encontrado. Após uns dias de buscas, todos esqueceram. Menos o cachorro Tigre, que segue dia e noite à procura do homem. 


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