20 de setembro: Mostremos valor, constância
Nossa gente sofreu com a cheia histórica deste ano, mas saiu ainda mais fortalecida, mostrou ao mundo que aqui vive um povo de garra
O gaúcho se constitui de força, luta e desejo por dias melhores. Tais ideais trouxeram nosso povo até aqui, superando todas as adversidades surgidas ao longo dos últimos 189 anos. Foi assim em maio de 1941 e tem sido desde o último mês de maio. É esta inquietação secular que move homens e mulheres do campo e da cidade no enfrentamento da pior tragédia do Rio Grande do Sul. Dia após dia, vidas são reconstruídas, histórias são recuperadas e a memória Farroupilha é evocada para renovar esperanças. Tal como professa nosso hino, a gente desta terra mostra valor em todas as guerras que se apresentam.
Da imposição do destino surgiu a disposição para a batalha, hoje tão espontânea que virou marca dos gaúchos. Palavra do momento, a resiliência, traduzida na capacidade de adaptação à má sorte ou às mudanças, explica cada uma das vezes que este Estado se reergueu, sempre mais forte, de seus tombos.
Seja na pequena propriedade rural ou na grande indústria; na arte ou no esporte; no lar ou no trabalho, nossa sociedade recobra o que lhe foi tirado. A água invadiu, destruiu, levou vidas, infelizmente, mas também é verdade que permitiu que pessoas se reconectassem, ofertou novas lições, gerou empatia e permitiu a solidariedade. Eis as tais façanhas sugeridas em um dos trechos mais cantados do hino do Rio Grande do Sul e que orgulhosamente queremos – e devemos – dividir com o mundo inteiro.
Desde maio, renovamos o compromisso com o que temos de melhor. Modelo ou não, nosso jeito de ser comoveu o Brasil e virou assunto dentro e fora dele. Irmanados, pudemos dar e receber ajuda.
A água invadiu, destruiu, levou vidas, infelizmente, mas também é verdade que permitiu que pessoas se reconectassem, ofertou novas lições, gerou empatia e permitiu a solidariedade. Eis as tais façanhas sugeridas em um dos trechos mais cantados do hino do Rio Grande do Sul e que orgulhosamente queremos – e devemos – dividir com o mundo inteiro.
Foram inúmeros os relatos de dedicação de voluntários, resgates, doações e acolhimentos. Do calçado até a saúde mental foram providenciados; não faltou alimento, roupa nem cama para dormir. A ajuda chegou por céu e por terra. Veio até mesmo por via marítima.
Em pleno centro da Capital, até embarcação de guerra atracou. Forças de segurança patrulharam com a ajuda de botes; UTIs foram deslocadas para longe da água; escolas particulares e públicas viraram abrigos, os animais ganharam espaço; bombeiros, militares e o povo tomou as ruas, todos por todos. Em cada canto do Rio Grande havia mãos estendidas e sotaques misturados; rostos e gestos evidenciaram uma única linguagem: vontade de fazer acontecer.
Bah! Deu certo. O que mais seria senão bravura o Centro Histórico de Porto Alegre pulsando praticamente a pleno quatro meses depois do pior evento climático já registrado por estas bandas? Que tal o comércio de Guaíba e Eldorado mantendo portas abertas sem água, Internet ou energia elétrica? Quem sabe então as cozinhas solidárias produzindo alimentos, as associações privadas e comunitárias que venceram a fome, o frio, a doença e o desalento? Não resta espaço para hesitação, deu certo! E como deu…
Os reflexos das nossas cidades distorcidos na água são cicatrizes, memórias que talvez nunca se apaguem. Quem esteve no centro da Capital à noite, inóspito, presenciou a estátua do Laçador ilhada ou tenha visto, mesmo que pelo smartphone centenas de pessoas fugindo da fúria da natureza, pode ter duvidado naqueles momentos iniciais, mas não deve mais.
vidas salvas. Cada perda material está compensada em uma vida salva. As ligações pendido socorro eram angustiantes, os relatos de quem ajudou e de quem foi ajudado são de arrepiar, assim como é ver, ainda hoje, os vazios imensos no lugar das cidades arrastadas para dentro dos rios.
Nossa gente carrega constante valor, assim como cantamos de peito estufado e cabeça erguida. Personagens revelados durante a crise comprovam que é mais que uma música, mais que exaltação versada em celebrações institucionais e eventos.
Na batalha travada pela diarista Deise Santos Rodrigues, 52 anos, mãe de cinco filhos – sendo uma menina de 8, com paralisia cerebral – para voltar para a casa destruída pela enchente no bairro Sarandi, na Capital, está o legado deixado por Bento Gonçalves e seus comandados. Assim como no freteiro Milton do Nascimento, 58 anos, que ainda vive sob uma ponte da BR 116, na região das Ilhas de Porto Alegre, com a família e mais de 50 animais. Mesmo em dificuldades extremas, mantém hasteada uma bandeira do Rio Grande do Sul à beira da rodovia.
Nossa gente carrega constante valor, assim como cantamos de peito estufado e cabeça erguida. Personagens revelados durante a crise comprovam que é mais que uma música, mais que exaltação versada em celebrações institucionais e eventos.
Nós venceremos qualquer desafio
Não há mais que se falar nas marcas de lama deixadas – e ainda presentes – nas paredes e nas vidas RS afora. O lamento já deu lugar ao trabalho que apoia a reconstrução – outra das palavras do momento. Que a grande enchente de maio de 2024 fique guardada na prateleira da história como mais um capítulo vencido por nosso povo, e que de lá nos mantenha incomodados para que façamos um amanhã melhor.
Legado
Assim como o Tratado de Ponche Verde, que devolveu a paz a Imperiais e Farroupilhas, em 1845, os eventos vividos neste ano remetem para o sentimento de unidade. Estamos juntos, Brasil e Rio Grande do Sul pelo bem maior. Desde então vivemos a certeza de que caminhamos lado a lado e de que assim somos mais fortes.
Superação
Do mesmo modo, a Chama Crioula, tradicional expressão da cultura gaúcha, em 2024 circula por nosso chão carregada de novos significados. Enquanto o fogo percorre o Estado levando esperança e memórias da Revolução, carrega junto exemplos marcantes da nossa gente forte e batalhadora. Não há como ser diferente daqui por diante.
Entre as cenas que nos impressionam, talvez para sempre, outro dos nossos símbolos. A bandeira gaúcha, vista na imponência de suas cores, em alguns casos até manchadas pela lama, tremulando em acampamentos, moradias e empresas impactadas exaltam o orgulho e impulsionam o amanhã. Sem importar o tamanho do desafio, venceremos. Independente de quando e como, estaremos prontos para qualquer guerra.
Veja Também
- Campereada Especial Semana Farroupilha
- 20 de setembro: A história do Rio Grande do Sul nas estrofes do hino
Futuro
Do otimismo vindo daqueles que movem nossa economia em tempos tão desafiadores vem a certeza da nossa volta por cima. No semblante ainda sofrido, mas carregado de esperança dos homens e mulheres que refazem seus lares e vidas, encontramos a mesma coragem dos que guerrearam no passado. Sem sombra de dúvida, esta fase difícil vai passar.
Cada tijolo recolocado reforça a retomada. É também uma homenagem aos que, infelizmente, nos deixaram. É a garantia de que dias com mais paz e celebrações chegarão, com diálogo, empatia e mais justiça econômica e social.
Por milhares de Miltons, de Deises, de Bentos e outros líderes da revolução que estabeleceu ideais, este 20 de setembro deve ser muito comemorado em cada pedaço deste rincão.
O Hino Rio-Grandense
Como a aurora precursora
Do farol da divindade
Foi o 20 de setembro
O precursor da liberdade
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda Terra
De modelo a toda Terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda Terra
Mas não basta, pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda Terra
De modelo a toda Terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda Terra
História
Os episódios – A luta foi travada por dez anos. A guerra farroupilha foi um combate de guerrilhas. Sem condições de confrontar o aparato imperial, os republicanos utilizaram a tática dos assaltos surpresa e retiradas rápidas. Assim, o exército imperial não conseguia pôr em prática a mesma atuação que empreendeu nas outras revoltas do período, cercando e sufocando as insurreições. Era preciso lançar mão de outros recursos – a negociação acima de todos.
República – No dia 10 de setembro de 1836 as tropas do general rebelde Antônio de Sousa Netto – o segundo na hierarquia farroupilha – se depararam com forças imperiais às margens do arroio Seival, no atual município de Candiota. Apesar da pequena vantagem numérica a favor dos imperiais, os revoltosos saíram triunfantes do confronto. Foi no calor dessa vitória que Neto proclamou a República Rio-grandense. A causa separatista, no entanto, estava longe de ser unanimidade.
A fuga do líder – Menos de um mês depois, Bento Gonçalves era feito prisioneiro na Batalha do Fanfa, próximo a Triunfo. Foi enviado ao Rio de Janeiro e ali foi detento no Forte da Laje. Conheceu o revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi e essa relação se provaria duradoura. Tentou fugir e, por isso, foi mandado para uma prisão na Bahia. De lá, conseguiu escapar. Retornou ao Estado e, em dezembro de 1837 é empossado como presidente da República.
Laguna – No inverno de 1839, Garibaldi recebeu a missão de criar uma marinha farroupilha para a tomada de Laguna, uma saída pensada para contornar o controle firme que o Império tinha sobre o porto de Rio Grande. O italiano teve sucesso na construção de dois lanchões – o Seival e o Farroupilha. Acossados pela marinha imperial, saíram da Costa Doce, onde ficava o estaleiro, e cruzaram a Lagoa dos Patos até o rio Capivari. Teve início então uma das maiores epopeias da guerra. Puxados por uma centena de bois, os dois lanchões, dispostos sobre rodados, fizeram o caminho por terra até a barra do rio Tramandaí, cruzando campos encharcados e atoleiros. Em 15 de julho, os dois barcos ganharam o mar. O Seival era comandado pelo norte-americano John Griggs, o “João Grandão”; Garibaldi era o responsável pelo Farroupilha. Na altura do rio Araranguá, já na costa catarinense, uma tempestade afunda o Farroupilha. Garibaldi se salva, mas quase duas dezenas de soldados, não. Ainda assim, os farroupilhas conseguem tomar Laguna e lá proclamam a República Juliana. A resposta do Império não tarda e a conquista se esvai depois de três meses.
Exaustão – Sem embates massivos ao aberto, com o choque de exércitos volumosos em encontros decisivos, a guerra se estende. Foi a revolta mais longa do período. A política imperial em relação a essa guerra também foi diferente, um misto de confronto e concessões. Com a paciência do governo central em combatê-los, os revoltosos começaram a esmorecer. A jogada final do Império veio em 1842, com a nomeação para presidente e comandante de armas da província de Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias, apelidado de “O Pacificador” pela sua atuação em outras revoltas pelo Brasil. Caxias é considerado por muitos historiadores um dos maiores militares da história do país. Com ele, a exaustão da revolta foi acelerada.
O fato dessa guerra se localizar numa província fronteiriça, próxima a uma região tão sensível como era o Prata, ajudou os líderes farroupilhas a obterem benefícios nas negociações de paz e a serem tratados de forma muito mais condescendente que outros líderes revoltosos. Em 1844 a derrocada estava no horizonte. O próprio Bento Gonçalves se retirou, Garibaldi e Anita partiram para o Uruguai.
Porongos – Na madrugada de 14 de novembro de 1844, uma tropa de lanceiros, parte da infantaria do contingente republicano, foi dizimada pelo exército imperial no Cerro dos Porongos, atual município de Pinheiro Machado. Esse contingente era formado por negros escravizados que lutavam a favor da República a partir da promessa de liberdade. Pois a chacina de Porongos teria sido o desfecho de uma traição: a do general Davi Canabarro, que, em conluio com os imperiais, teria desarmado os escravos na véspera, permitindo o massacre. Quatro meses depois era assinado o Tratado de Poncho Verde.
Mito fundador da identidade gaúcha – A Revolução Farroupilha não teve caráter popular, tampouco uniu todos os rio-grandenses – Porto Alegre, por exemplo, continuou um bastião imperial e, por isso, recebeu o título de “mui leal e valerosa”. A revolta não congrega, portanto, uma identidade coletiva. Mas o enfrentamento com o poder imperial centralizador, que atropelava as autonomias regionais, serviu de inspiração para a construção de um sentimento pátrio regional.
Os rio-grandenses então optam por essa afinidade com a cultura da campanha, com o ethos do Pampa fronteiriço, das lidas campeiras, da sociedade da estância. O meio de vida rústico, militarizado pelas circunstâncias históricas e ligado à vida natural dos animais (sobretudo o cavalo e o gado) e das grandes extensões de terra, se torna a fórmula com que a comunidade se imagina e se define.
O desenvolvimento histórico-social do espaço sul-rio-grandense conheceu variados influxos populacionais em diversos momentos. Dos colonizadores descendentes das primeiras gentes, de origem lusitana e cujo ponto de partida foi a região sudeste brasileira, aos “castelhanos” da ocupação espanhola no Prata e no Chaco, passando pelos indígenas nativos do Pampa, do Planalto gaúcho e do Litoral, até os africanos escravizados trazidos via as grandes rotas do tráfico. Mais tarde, ondas concentradas de imigrantes europeus, japoneses e do Oriente Médio contribuíram para uma maior diversificação étnica, cobrindo o território de diferentes idiomas, crenças, arquiteturas, hábitos, gastronomias.
Em um dado momento (meados do último século), ela foi trabalhada deliberada e objetivamente no intuito de construir uma identidade. Logo ela ganhou tração própria e vive de sua própria energia. O “espírito cultural” a animar o “eu” gaúcho foi localizado na identidade pampeana da fronteira, com todas as adaptações inevitáveis que esse transplante requer para os ambientes que se urbanizam rapidamente, ou aqueles de forte cultura colonial, ou os mais ou menos cosmopolitas, globalizados pelo avanço da história. Filha de uma historiografia positivista dos grandes homens e dos grandes eventos, a “explicação” sobre a razão de ser dos sul-rio-grandenses vai buscar na Revolução Farroupilha o seu mito fundador.
O rio-grandense agora é o gaúcho, o trabalhador do campo, com sua cultura e cosmologia, que incorpora costumes do colonizador e do índio. O evento histórico singular da revolta de dez anos contra o poder central, localizado num ponto específico da história, serviu como catalisador de uma necessidade de identidade. E ela se fez, tornando corriqueiros e desejáveis os costumes, adotando o linguajar e instigando o imaginário.
**
Coordenação: Jonathas Costa e Luciamem Winck | Edição: Paulo Mendes e Cristiano Abreu | Textos: Cristiano Abreu e Juliano Bruni | Diagramação: Pedro Dreher